Colunas - Ligia Silva: A preta metida não vai pedir desculpas a ninguém
- por Lígia Silva
- 22 de dez. de 2016
- 3 min de leitura

Por muito tempo fui vista como a "preta metida". E por muito tempo pensei que a culpa era a minha. Eu poderia ser mais simpática, poderia ser mais mansa, poderia mudar para agradar. Eu poderia, mas não estou interessada.
Cresci num ambiente marginalizado pela 'alta sociedade' da minha cidade. Um lugar que só é lembrado na época de campanha eleitoral. Cresci tendo minha inteligencia posta em duvida. Sera que ela pode mesmo? Enfrentei preconceitos e o bullyng da forma mais cruel. Sim, crianças podem ser cruéis. Bullying e racismo. "Aquela negra mais feia da classe". "Aquela negra que não sabe se vestir". "Aquela negra que nunca namorou". "Aquela negra que vai ficar pra titia". Fui muito subestimada e, sabe, ainda sou.
Através das nossas vivencias temos duas opções, ou enlouquecemos, ou nos tornamos mais fortes. Nós mulheres, negras, independentemente de classe social, temos muitas historias. E se tem uma coisa que somos parecidas, é que somos subestimadas diariamente.
Quando você é criança, e até mesmo adolescente, você não sabe se proteger. Mas através da vivencia, somos obrigadas a aprender. Quando você é preta e pobre não pode pagar analise. Não tem como pagar psicologo. Você tem que engolir o choro e continuar lutando. Foi assim que fiz e que faço. A gente quer chorar como qualquer mulher, mas, infelizmente, não temos tempo nem ombro para encostar a cabeça.
A unica maneira de tirar a imagem de servil é começar a reagir. Eu comecei a reagir ao racismo. A reagir as piadinhas. A ler cada vez mais. Comecei a escrever. Comecei a me graduar. O que as pessoas esperam que uma mulher que more na periferia é que ela não estude. É que ela não leia. É que ela não se posicione. É que ela não se vista bem. Que não saiba se comportar. É isso que esperam de nós. Esperam que sejamos números ruins nas estatísticas ou sejamos a visão caricata que as novelas fazem de nós.
Engraçado como as pessoas se surpreendem quando uma preta que mora na periferia diz que escuta musica clássica, jazz e rock. Diz que leu teóricos da filosofia, historia, literatura e sabe discutir sobre tudo, inclusive sobre a cultura africana, com propriedade, destruindo assim, o senso comum.
O conhecimento é libertador. É mais que uma graduação. Conhecimento é o poder de conhecer a si mesmo. E quando conhecemos a nós mesmos, podemos mudar tudo ao nosso redor. Isso incomoda e fere o ego de quem nós subestima ao ponto de sermos vistas como "metidinhas", "bestas", até pelos nossos. Até mesmo os que moram na periferia não aliviam conosco, afinal, "tu se acha demais" só por que decidiu remar contra a maré. Então o que escuto sobre mim é, "nossa, que nega besta", "que preta metida", "nossa, quem ela acha que é?".
A preta metida teve que engolir muita poeira e ainda vai engolir muito, afinal, a preta vive num país que era acostumado a estuprar suas ancestrais nas casas grandes, alimentar, com seus seios fartos, filhos dos outros, enquanto os dela morriam de fome. A preta metida aprendeu a revidar, a reivindicar seus direitos. Ou vocês acham que a mulher preta iria ficar debaixo da servidão para sempre?
Hoje elas são advogadas, médicas, engenheiras, professoras, chefes de Família, guerreiras acima de tudo. E nada, nada servis. Claro que existe uma parcela, e uma grande e real parcelas, servindo a vocês e sendo humilhadas. E é por elas que lutamos. E é essa parcela que representamos na nossa militância pessoal, coletiva. São essas que vamos ajudar a descobrir o poder e potencial, e assim, mudar a nós mesmas e ao mundo.
Falando da Preta Ligia Silva, isso não é uma indireta, é uma direta mesmo. Sou muito metidinha sim. Sou muito chatinha sim. Sou Preta sim. E vou falar disso até o fim da minha vida. Aceitem. Não vou pedir desculpas pelo que sou. Não posso pedir desculpas pela visão que vocês tem sobre o que é ser uma negra. Se tem alguém que deve pedir desculpas, esse alguém não sou eu. A preta metida só está devolvendo a vocês, anos de humilhações e silenciamento. Saibam lidar com esse fato.
Se a carapuça serve, falo mesmo. "E eu cobro quem me deve".
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